Princesas (sorridentes) desenhadas por crianças do Patronato de Santo António - Beja 2005
Olhos postos no ecrã, uma caneca de leite com chocolate quente numa mão e um papo-seco com fiambre na outra. Aguardava-se o momento mais esperado do dia. O momento que de certa maneira marcava o início das actividades lúdicas, por outras palavras, a brincadeira, que se estendia até à hora do jantar. Depois dos trabalhos de casa feitos, tabuadas, números romanos ou palavras repetidas o número de vezes que o humor do professor ditasse nesse dia, chegava a hora pela qual todos esperavam. Numa altura em que parecia impossível que houvesse um dia canais de televisão só de desenhos animados, em que o DVD ainda não tinha surgido e os vídeos ainda estavam a aparecer timidamente, aquela hora de desenhos animados era visto como um pequeno tesouro, aproveitado até á ultima moeda de ouro. O programa passava num dos dois únicos canais existentes na altura e tinha o título apropriado de “Brinca Brincando”. Houve uma história em particular que ficou na minha memória, uma história que se prolongou por vários episódios e que intrigava a mim e toda aquela trupe de amigos que se juntava com uma assiduidade exemplar. Como quem conta um conto acrescenta um ponto e tendo em conta que não me lembro de alguns pormenores da história tomo a liberdade de preencher os espaços em branco. Então era assim:
Era uma vez uma princesa que vivia num reino longínquo. Esta princesa tinha uma beleza inigualável, mas tinha algo que intrigava todo o reino: nunca sorria, nada a fazia sorrir.
O rei preocupado com a tristeza da sua filha não sabia mais o que fazer. Era um rei poderoso dono de uma riqueza que fazia inveja aos reis dos reinos vizinhos. Certo dia decidiu mandar mensageiros em todas as direcções. Tinham ordens para que avisassem todos os reinos pelos quais passassem que o rei oferecia metade da sua fortuna a quem fizesse sorrir a sua filha. Além disso, quem conseguisse essa proeza poderia casar com a princesa.
Alguns dias depois começaram a chegar príncipes, duques, marqueses, condes e barões. Vinham de terras que nem o próprio rei conhecia. Cada um usava a sua opulência, o seu poder e os seus dons na tentativa de impressionar a princesa. Traziam-lhes os palhaços mais hilariantes do mundo, grupos de bailado, animais exóticos, mostravam-lhe diamantes raros, faziam esculturas e quadros da princesa, exibiam a sua própria beleza desfilando em magníficos cavalos, exibiam grandiosos espectáculos de pirotecnia…
A princesa mantinha o seu ar sereno sem nunca esboçar nem um pequeno sorriso …
O tempo ia passando, e os candidatos para despertar o sorriso da princesa iam sendo cada vez mais escassos. O povo tecia os mais diversos comentários:
- A princesa é uma menina mimada e embirrante!
- Diz que a moça não é muito boa do sentido, caiu do berço quando era pequena…
- É uma princesa muito estúpida, mal empregada coroa.
Desanimado e exausto o rei, sentou-se no seu jardim. Com o olhar firme no chão, viu aparecer uns pés descalços:
- Consigo fazer sorrir a princesa!
O rei olhou para cima e viu de quem era aquelas palavras que despertavam no seu coração uma pequena centelha de esperança. Era um jovem pobre, de roupas gastas pelo uso, que ganhava a vida cuidando daquele jardim, o jardim dos passeios de final de tarde dos reis. No olhar tinha a força inabalável da certeza com que dizia as suas palavras, e isso foi o suficiente para o rei permitir que o jovem tentasse.
Foi chamada a princesa ao jardim. O jovem nunca tinha visto tamanha beleza numa mulher. Por momentos ficou como que hipnotizado olhava para aqueles cabelos negros como a noite, uns olhos que pareciam mudar de cor cada vez que um raio de sol os encontrava, e uns lábios que…continuavam sem sorrir.
- Estou à espera – disse o rei impaciente.
Então o jardineiro retirou uma pequena caixa de madeira do seu bolso entregando-a à princesa. Lentamente a princesa abriu-a. E de lá de dentro saiu o objecto mais inesperado, um par de óculos. A princesa examinou aquilo, intrigada, e colocou-os. Então algo mágico aconteceu, pela primeira vez na sua vida conseguia ver as cores, as formas tudo com uma nitidez que ela julgava não existir. Reparava nas flores daquele jardim, nos pássaros, nos reflexos da água do lago e naturalmente um sorriso começou a sair dos seus lábios, e outro e outro. E desde esse dia a princesa sorria todos os dias.
Como em todos os contos, a princesa casou com o jardineiro, viveram felizes para sempre (pelo menos até prova em contrário, tenho estado atento à imprensa cor de rosa e parece que assim continuam) e tiveram muitos filhos, todos com nomes tão compridos que tinham de ter uma lista telefónica só para eles.
Como todas as histórias esta história também dever ter uma moral. Como em todas as histórias cada um lhe retirará a sua própria moral. Na minha opinião ela mostra como a beleza está essencialmente nos olhos de quem a vê.
Terminada a história as portas da imaginação ficavam abertas e tinha início a brincadeira…